De acordo com uma pesquisa divulgada no ano passado (Nielsen), o Brasil lidera o ranking mundial de influenciadoras[1] digitais no Instagram, com aproximadamente 10,5 milhões de usuárias que possuem pelo menos 1.000 seguidoras[2]. Antes de analisar o caso brasileiro, vale apontar algumas diferenças entre as formadoras de opinião e as influenciadoras contemporâneas, agora chamadas de “produtoras de conteúdo”. São papéis diferentes e aparentemente seria injusta a comparação, mas a sociedade de plataforma produz essa tensão no esvaziamento da influência de umas e na ascendência das outras.
Influenciadoras são trabalhadoras de plataformas que têm como objetivo maior angariar seguidores e fazer dessa atividade uma fonte de prestígio e/ou de renda. Na atual sociedade de plataformas, elas ocupam o espaço antes mediado por formadoras de opinião que tinham profissões tais como acadêmicas, escritoras, jornalistas, políticas, teólogas, artistas... Uma influenciadora e uma líder de opinião não competem, em tese, pois atuam em áreas distintas: uma em setores particulares e fragmentados para “influenciar” pessoas; a outra na dimensão pública, do comum, buscando oferecer reflexões e pautas de temas concernentes à coletividade. Atualmente há uma crise de legitimidade das líderes de opinião, sendo seu espaço ocupado pelas atuais “produtoras de conteúdo”. Vou abordar os desafios desta transição.
Uma influenciadora digital é alguém que utiliza plataformas digitais para criar e compartilhar conteúdos, atraindo pessoas e reforçando comportamentos e práticas de consumo. Existem diferentes categorias de influenciadoras: nano, micro, macro e mega, variando conforme o número de seguidores – de 1.000 para as nano até mais de um milhão para as mega. Algumas abordam temas políticos e de interesse geral (política, direitos humanos, meio ambiente), mas segundo dados esparsos de empresas de “marketing de influência” elas atuam majoritariamente em setores de Moda e Beleza, Lifestyle e Bem-estar, Entretenimento e Games, Gastronomia e Culinária, Tecnologia e Gadgets. Ou seja, a maioria reforça paixões individuais, atraindo empresas de marketing e publicidade digitais.
Estou falando aqui de “ideais-tipo” (Weber) - um modelo mental que reúne características essenciais de um fenômeno sem representá-lo em sua totalidade. Há influenciadoras preocupadas com a coisa pública e formadoras de opinião tradicionais vinculadas a estruturas de poder que enviesam o debate conforme seus interesses. Dentro dos limites deste ensaio, busco indicar o que impulsiona, em princípio, esses ideais-tipo. É importante lembrar que formadoras de opinião tradicionais nem sempre são neutras ou independentes de interesses comerciais, políticos e financeiros. O espaço público racional, orientado pelo interesse coletivo, sempre foi uma utopia. Por outro lado, muitas influenciadoras agem em prol do interesse público. O objetivo aqui não é idealizar as formadoras de opinião nem demonizar as influenciadoras, mas analisar os princípios que orientam ambos na atual esfera pública mediada por plataformas digitais.
As formadoras de opinião tradicional, da Grécia antiga até a cultura de massa do século XX, medeiam a opinião pública legitimadas a priori por instituições e por competências adquiridas e reconhecidas – formação acadêmica, prestígio cultural, posição institucional, reconhecimento internacional. A mobilização ocorria por meio de palestras, entrevistas, livros e filmes, utilizando as mídias massivas como livros, jornais, rádio e TV. Já as influenciadoras contemporâneas constroem sua legitimidade em contato direto com um nicho, ou seja, um grupo de interesses específicos (culinária, estética corporal, games, etc.). Seu sucesso é medido a posteriori, com base no número de visualizações e seguidores conquistados de acordo com a lógica algorítmica das plataformas. Dessa forma, sua mediação não está necessariamente atrelada ao interesse público, mas sim à capacidade de angariar simpatizantes e se transformar em fonte de renda. Dependentes das plataformas digitais, as influenciadoras são, na prática, “trabalhadoras de plataforma”, ou “influenciadoras-ciborgues”.
Certamente a emergência do fenômeno de influenciadoras digitais permite a “liberação” da palavra, a democratizando da mediação pública - qualquer pessoa pode mobilizar simpatizantes para qualquer assunto. Isso é relevante e remete à complexidade do ecossistema comunicacional. Assim como a internet desestruturou a hegemonia dos mass media(jornais, rádio e TV) ao liberar a palavra, conectar interesses e reconfigurar a cultura (escrevi sobre isso há 20 anos)[3], as influenciadoras reconfiguram a dinâmica da mediação pública. Nessa nova esfera comunicacional, elas estão ocupando o espaço dos formadoras de opinião tradicionais, forçando, inclusive, algumas instituições (empresas, universidades, agências de fomento) a adotarem práticas influenciadoras.
Vejamos, por exemplo, o debate atual sobre a comunicação pública da esquerda no Brasil: o diagnóstico aponta a necessidade urgente do “estilo influenciador”. Se o campo progressista insistir em uma mediação clássica, sua comunicação fracassará. A saída não é manter debates intelectualizados e profundos “para rádio e TV”, mas fomentar performances de líderes políticos que engajem nas redes e confrontem a extrema direita. Esse é mais um sintoma do embaralhamento das funções de ambas as mediadoras.
Enquanto as formadoras de opinião buscavam ganhos simbólicos (que poderiam, claro, se converter em financeiros), as influenciadoras miram, antes de tudo, a viabilidade econômica. Para se estabelecerem, precisam agradar ao público e fazer concessões às plataformas. O preço a pagar é a superficialidade dos debates, a hiperindividualização dos interesses, o atrelamento à lógica do consumo e a dependência das gramáticas técnicas das plataformas. Tudo é moldado para garantir rentabilidade. Por serem trabalhadoras de plataforma, precisam atrair, manter e ampliar seu público, adaptando-se à lógica algorítmica das redes sociais. Diferentemente, as formadoras tradicionais, muitas vezes protegidas pela estabilidade profissional (acadêmicas, jornalistas, artistas reconhecidas), podiam atuar sem a necessidade de angariar simpatizantes ou recursos diretos.
Folha de São Paulo, 01 de fevereiro de 2025
Líderes de opinião construíam (constroem?) a sua autoridade a longo prazo, vinculadas a movimentos sociais e debates ideológicos históricos. Influenciadoras operam para ganho rápido, pois o fenômeno pode ser passageiro: interrompido por mudanças na plataforma, pelo cancelamento por deslizes, ou por mudança de “tendências”. Essa diferença remete à distinção entre redes sociais e jornalismo profissional: as redes dão ao usuário o que ele quer para mantê-lo conectado e monetizar sua atenção; o jornalismo pauta (deveria) o interesse público para auxiliar na formação da opinião e tomada de decisão política (cidadania). Enquanto as redes atendem a tribos, o jornalismo, em tese, busca o comum – embora seja também atravessado por interesses empresariais e ideológicos. Lembrando que analisamos o “ideal-tipo”, tendo consciência de que o jornalismo profissional é enviesado pelas empresas e ideologias que o sustentam, e que muitas líderes de opinião estão apenas preocupadas em se manter na “crista da onda”. Do outro lado, há influenciadoras que são verdadeiras líderes de opinião, no sentido de chamar a atenção para problemas coletivos.
Seja como for, o diagnóstico é que hoje as líderes de opinião não mobilizam mais as massas, cada vez menos massa e mais tribos, com interesses fragmentados e temporários. Não há tempo, nem paciência, para discussões lentas, em diálogo aberto com o contraditório (a utopia da esfera pública esclarecida). Na tendência atual de substituição das líderes de opinião, o fenômeno das influenciadoras tende a empobrecer a esfera pública. “Produzir conteúdo” é lacrar para aumentar engajamento e monetização. Influenciar é confirmar o que se pensa e gosta, para não espantar seguidores. São mais “confirmadoras” de interesses individuais do que influenciadoras para mudanças coletivas.
Talvez isso explique por que o Brasil tem tantas influenciadoras. Somos um dos países que mais utilizam as redes sociais, temos grande destreza no uso das plataformas e uma diversidade cultural que permite a multiplicidade de nichos. Como somos um país de poucas leitoras. Passamos da cultura oral à digital, sem a cultura livresca, sendo a tradição oral mais forte que a escrita. O digital tem muito de cultura oral. Isso favorece o consumo de vídeos e podcasts em vez de textos complexos. As seguidoras estão aí, esperando quem possa oferecer entretenimento.
O acesso facilitado à tecnologia e a gratuidade do acesso às principais plataformas de redes sociais (nos contratos com operadoras de telefonia celular) também impulsionam esse fenômeno, assim como a precariedade do mercado de trabalho (trabalhadoras sem emprego formal, vivendo na insegurança financeira), que leva muitos a enxergar no digital uma alternativa de renda. Há ainda um mercado cada vez mais sensível à publicidade e ao marketing digital, apto a remunerar influenciadoras, principalmente “macro” e “mega”. Poder se transformar em uma influenciadora é ainda um salto para participar da sociedade do espetáculo, tornando-se uma celebridade. Para Guy Debord, a sociedade do espetáculo é aquela em que a vida social é mediada pela aparência e pelo consumo simbólico.
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Minha crítica se volta para o apagamento progressivo da mediação tradicional. Conheço influenciadoras comprometidas com a dimensão pública e intelectuais públicos que apenas surfam na carência cultural local sem mobilizar debates significativos. Precisamos urgentemente repensar o comum e buscar saídas coletivas para desafios planetários como a entrada no Antropoceno. É essencial que influenciadoras e mediadoras tradicionais trabalhem juntos para promover debates coletivos acessíveis. Precisamos da ação rizomática e qualificada de influenciadoras e de formadoras de opinião que proponham debates coletivos, inclusive nas redes sociais, sem pedantismo ou desprezo pelo comum. Como dizia Michel Serres, manter-se jovem implica ler, ouvir e debater ideias desafiadoras. O confortável é limitante.
A mediação clássica perdeu espaço por soberba e distanciamento, mas é necessária, precisando estar presente também nas plataformas digitais; da mesma forma que a “influência” das produtoras de conteúdo por ser empática, sensível, vinculada à “vida como ela é”. É muito positiva a democratização da palavra pública, a quebra do monopólio das instituições na mediação da opinião tradicionais com o surgimento de influenciadoras, mas precisamos também da palavra que chame para o coletivo que exijam reflexão, que vá contra a fragmentação hiper individualista e tribal de interesses descolados, que ressalte uma visão mais ampla e que abra possibilidades de construção de uma sociedade mais consciente dos seus problemas coletivos. Com as duas potências reconfiguradas, talvez tenhamos um equilíbrio e quem sabe, no futuro próximo, elas possam enriquecer o debate público[4].
A ver!
[1] Vou utilizar nesse ensaio a denominação “influenciadora” e “as líderes de opinião” para designar sempre “pessoas influenciadoras” ou “pessoas líderes de opinião”. O mesmo será feito para outros substantivos/adjetivos tais como “trabalhadora, acadêmica, teóloga, escritora...”.
[2] Sobre a pesquisa, ver https://valor.globo.com/patrocinado/dino/noticia/2024/09/09/brasil-lidera-ranking-mundial-de-influenciadores-digitais.ghtml
[3] Cibercultura Remix. Sentidos e Processos. São Paulo, Itaú Cultural, agosto de 2005. Ver https://facom.ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/remix.pdf
[4] Ao finalizar esse texto tomo conhecimento (obrigado Thiago Assumpção) de um ensaio de Renato Ortiz, defendendo posições muito semelhantes à minha. Ortiz, R. Influenciadores, intelectuais, mediadores simbólicos. In Rumores. n. 31, v. 16, jan-jun 2022, DOI: 10.11606/issn.1982-677X.rum.2022.196755
Foi uma honra participar da palestra proferida pelo senhor em Feira de Santana, em comemoração ao Dia do Jornalista. Patrícia Sales
professor, tenho mts considerações sobre esse texto. encaminharei por e-mail