Treinados pela IA
Estamos treinando a IA para se tornar mais inteligente, eficiente, diminuindo nossa carga de trabalho e criando visões sobre o mundo (dos negócios, da inovação, da medicina, da educação, das artes...). E se eu propusesse pensarmos que em vez de estarmos treinando a IA, é a IA que está treinando a nós, os humanos?
Como toda inovação técnica, ela nasce cheia de potencialidades e estas são destacadas por indústrias, governos, cientistas, empresários... Vamos ficar mais produtivos, criativos, eficientes, e mesmo inteligentes... Há também os que alertam para os malefícios. Correto. Mas na minha lógica, ambos fazem a mesma coisas: ela já chegou e vai ficar, para o melhor ou o pior, e precisamos estar receptivos, para uma coisa ou outra.
Vamos sendo treinados pelos discursos, introjetando o imaginário assim construído e cognitivamente nos preparando para pensar como uma IA. Isso já acontece com as plataformas de redes sociais, nas quais, para viralizar e monetizar, usuários devem saber, entender e concordar com a sua gramática, agindo como se fossem o próprio algoritmo.
Produzir inteligência artificial, necessita de recursos ambientais, processadores rápidos, modelos para serem treinados, humanos para ajudar no treinamento desses modelos e para fornecer dados (da forma que os sistemas querem). A IA precisa ainda e de forma consistente, para o nosso treinamento, de discursos que nos convençam da sua necessidade, importância, benesses ou perigo. Tudo mobilizado em uma lógica da inevitabilidade para, então, estarmos bem treinados para encará-la. Pois tudo pode estar em aberto, menos a sua inevitabilidade.
Folha de São Paulo, 14/02/2024
Ideologias, sonhos, interesses políticos e econômicos são mobilizados e já vemos o mundo com olhinhos da IA que é aquele que reduz a complexidade do mundo a saídas, respostas, dados inequívocos. Começamos a reconhecer que o mundo é isso mesmo, com pouca ambivalência e facilmente automatizado. Temos assim a conformação social, simbólica, pragmática e psicológica que aprende a confiar e a ver o mundo como essas tecnologias.
Treinado que somos, já reformulamos a forma como perguntamos e respondemos para interagir bem com os sistemas, agindo, pensando e esperando resposas, “como ele”. Somos cad a vez mais assistentes dos assistentes de IA. O treinamento leva inevitavelmente a uma mudança cognitiva, ou seja a uma mudança na forma como lemos e escrevemos o mundo, e por consequência como tomamos decisões afetivas, políticas, econômicas, bélicas. Não é a IA que substituirá o humano, é o humano que, se bem treinamento, se parecerá cada vez mais com uma IA (atualizando a frase de Henri Lefebvre em “Vers le cybernanthrope”).
Mas isso não é exclusividade da IA. Estamos sempre sendo “treinados” por nossas tecnologias da inteligência e instrumentos científicos, nos adequando às sua lógicas e adaptando o nosso olhar aos seus princípios e materialidades. O que sabemos do mundo vem da mediação de múltiplos artefatos que implica uma forma específica de lidarmos com aquilo que experimentamos, no dia a dia, em primeira mão, ou com o distante, através de livros, das artes, da ciência... Nossa inteligência é desde sempre “artificial”, devedoras dos instrumentos, máquinas, ferramentas...
O que podemos fazer contra esse “treinamento reverso” imposto pela IA?
A saída, certamente, não é adotar uma perspectiva antropocêntrica e essencialista de “dominar o instrumento”. Fracassaremos se a meta for evitar a hibridização com os artefatos, pois impossível. A saída é sempre questionar os constructos. Nos rebelar. Hackear, perturbar e desviar esses treinamentos, produzindo sentidos mais coletivamente construídos. Desconfiar dos fazedores de sonhos que estão menos preocupados com sonhos e pesadelos e mais com o que podem ganhar politica ou financeiramente. Inteligência não é processar dados, mas adaptação, desadaptação e readaptação ao mundo aberto de sentido. Não é dar a resposta automatizada, mas questionar o porquê das perguntas.