A controvérsia envolvendo a plataforma X e o retorno do seu acesso no Brasil nos últimos dias, sem autorização judicial, expõe a complexa intersecção entre técnicas digitais e decisões políticas. Esta situação nos força a reconsiderar a distinção tradicional entre os diversos domínios da sociedade, tais como a técnica, a política, a economia e a cultura. Situo este evento dentro de um debate mais amplo sobre as dimensões sociotécnicas das redes sociais, das plataformas e da infraestrutura digital contemporânea.
Há uma ilusão da autonomia dos domínios sociais.
Comumente, há uma tendência a fragmentar a sociedade em campos autônomos como o social, cultural, religioso, técnico, científico, econômico, político... Esta perspectiva sugere que tais campos operam de forma independente, como se cada um mantivesse uma existência separada do todo, ou cimentada pelo todo chamado de sociedade. No entanto, esta visão simplista não reflete a complexidade da organização social. Na realidade, o que chamamos de "social" é não o que compõe de cima esses domínios, mas antes, o resultado da interconexão ampla de agentes constituindo uma circulação de valores que chamamos de domínios (o que circula culturalmente, politicamente, tecnicamente, cientificamente, subjetivamente...). A sociedade é o que emerge da solução desses valores e por isso elas se diferenciam a depender do problema. Como cientificamente, politicamente, economicamente, tratamos o vírus da Covid-19? Certamente foi diferente do tratamento dado pela Australia, Alemanha ou Índia.
A técnica não é um domínio específico e autônomo da vida social. Ao contrário, ela se manifesta através de organizações e associações que englobam ideias de mundo que se indexam a dimensões econômicas, culturais, políticas, religiosas e sociais. Inovações evidenciam como a definição técnica é impregnada de valores (éticos, morais, políticos...). A vida social se expressa a partir dessas inter-relações, onde as associações técnicas são parte intrínseca das construções sociais, e não elementos independentes. Portanto, ao observarmos eventos como a controvérsia envolvendo a plataforma X, devemos compreender que estamos diante de uma discussão supostamente técnica, mas que é de fato, econômica e política.
O retorno da plataforma X ao Brasil, desafiando uma ordem judicial, exemplifica como uma mudança técnica (passando a ser vinculado a plataformas “Cloudflare”, uma empresa fornece uma rede de distribuição de conteúdo e segurança cibernética em nuvem) pode ser empregada para subverter decisões políticas e atacar a soberania de um país. Este caso específico reflete o uso estratégico da técnica como ferramenta política, modificando o IP dos servidores do X, tornando o bloqueio da plataforma mais complexo. O IP do X é agora o IP da Cloudflare e retirar do “ar” o X é cortar o acesso à Cloudflare. Portanto, a partir de uma modificação técnica, a plataforma conseguiu contornar as ordens emitidas pela Suprema Corte brasileira, reconfigurando sua presença no país.
Esta não é uma novidade histórica. Ao longo do tempo, diversas intervenções técnicas foram utilizadas como instrumentos de ação política. Durante a Segunda Guerra Mundial, a ex-União Soviética utilizou a diferença de bitola das linhas férreas para dificultar a invasão alemã. Da mesma forma, vemos hoje nas grandes metrópoles o uso do design defensivo, uma estratégia que incorpora elementos arquitetônicos e urbanos para evitar a presença prolongada de pessoas em espaços públicos. O controle comercial também emprega mudanças técnicas para limitar a liberdade do consumidor. A padronização de cabos, plugs e conectores específicos para dispositivos de uma determinada marca força os consumidores a aderirem a um ecossistema fechado, tornando-os reféns de um tipo específico de produto. Outros exemplos incluem quebra-molas, sensores de cinto de segurança que impedem a partida do carro, entre outros. Essas modificações, aparentemente técnicas, são, em essência, manifestações de políticas de controle social
A ação da plataforma X no Brasil pode ser vista sob duas perspectivas fundamentais. Primeiramente, configura-se como uma espécie de “invasão” do país. A decisão do Supremo Tribunal Federal que proíbe o uso da plataforma no Brasil foi “hackeada” através de uma modificação técnica que permite o acesso à plataforma, desafiando diretamente a autoridade judicial.
Em segundo lugar, a plataforma X colocou outras instituições como reféns, utilizando uma rede de proteção como o Cloudflare. Para bloquear o X, é necessário agora impedir o acesso ao Cloudflare, o que implicaria na retirada da internet de bancos, empresas e mesmo instituições civis e governamentais brasileiras. Tal estratégia transcende a mera dimensão técnica e se insere diretamente no campo político, questionando a soberania nacional.
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O caso da plataforma X demonstra claramente que as mudanças técnicas não são neutras ou meramente operacionais. Elas carregam consigo ideias de mundo, formas de ação social e decisões sobre o uso dos recursos disponíveis na natureza. A transposição da técnica para o campo político evidencia que não existem ações puramente técnicas; cada inovação ou modificação carrega implicações amplas que constituem outros domínios ( aqui claramente econômico e político).
A simples mudança de servidores não pode ser entendida apenas como uma ação técnica. Trata-se de uma intervenção que afeta diretamente a soberania nacional e coloca em evidência a natureza tecnopolítica das redes e infraestruturas digitais modernas. A análise dessas redes deve, portanto, considerar a complexa inter-relação entre os domínios, reconhecendo que cada modificação técnica possui um impacto que vai além do mero funcionamento, influenciando e sendo influenciada pelos arranjos dos domínios que constituem o social. Expressando a sociedade brasileira, como os nossos arranjos jurídico e técnico vão enfrentar esse problema?