Este ensaio acaba de ser publicado no livro “Culturas Digitais: Movimentos e possibilidades”. A referência completa deve ser:
Lemos, A. O último livro do mundo. Uma ficção sobre a cultura digital. In SP Leituras. Culturas digitais: movimentos e possibilidades. Secreataria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo, 2022, pp. 85-93. ISBN - 978-65-89169-27-7.
Vou começar com uma história ficcional (que como todas, falam sempre do passado, do presente e do futuro). Histórias são sempre narrativas compartilhadas, reescritas pelos leitores e pelos críticos, como algoritmos que hoje tomam conta da cena na atual cultura digital. Ambos, para performarem, precisam ser reescrito e temos aqui uma de suas dimensões ético-políticas (Amoore, 2020). Narrativas criam mundos, e precisamos de mundos para habitar. Urge, portanto, boas narrativas.
Estamos em 2222, em um país do que chamávamos em 2022 de Sul Global (essa perspectiva parece ter sido apagada pelo entendimento de que todos habitamos a Terra, que é ela o Globo do global e não o Global como uma dimensão econômica que divide norte e sul). Nesse momento, as mídias (as de massa e as que nos referíamos de forma curiosa como mídias sociais – como se alguma mídia não fosse social), os celulares e os computadores, como conhecíamos em 2022, não existem mais. Agnes, descobre, através de uma conversa com uma outra menina, de outro lugar, interagindo pelos biblios, que existiria na sua cidade um último exemplar de um livro impresso que ainda não tinha sido recolhido para servir como amostra em algum tipo de museu. Ela e alguns amigos decidem então procurar esse último livro impresso não lido do mundo, que estaria escondido no subsolo de uma cafeteria que até 2022 era uma antiga biblioteca.
Não há mais bibliotecas, e elas já estavam começando a lutar para não se extinguirem em 2022, assim como as livrarias, transformadas há mais de 200 anos em shopping e cafeteria, ou em clube de tiros. Não há mais livros impressos, a não ser relíquias em museus, como a Bíblia de Gutenberg ou “The Book of Kells”, alguns exemplares feitos por encomenda. No entanto, todas as histórias e narrativas da ciência ou da ficção estão disponíveis livremente para todos no biblio. Os jovens em 2222, diferente do que poderiam pensar os mais pessimistas em 2022, leem muito. E escrevem muito também.
A era dos blogs, do Twitter e do Facebook no século XXI deixou como legado uma geração que lê e escreve mais do que os avós. Em um primeiro momento, eles escreviam, mas foram aos poucos reduzindo seus textos a polarizações superficiais e a narrativas curtas. A cultura digital se inicia como uma grande utopia da conexão e do compartilhamento. Em 1990, falava-se de inteligência coletiva, conectiva, potência da colaboração; em 2000, com a web 2.0, blogs de comunidades virtuais e a possibilidade de que qualquer um poderia escrever seu próprio conteúdo e publicar (Lemos, 2002). Parecia que a era da desconhecimento e do retrocesso estava, por fim, enterrada. Em 2010, as redes sociais permitiram uma grande amplificação das vozes. A primavera Árabe, último respiro da utopia da cibercultura, parecia apontar para o fim das ditaduras e do autoritarismo. Ou seja, a cultura parecia se emancipar, com a ajuda das tecnologias de ampla conexão.
Mas, a partir da segunda metade da década de 2010, uma sociedade de plataformas digitais, dominadas por poucas empresas privadas, instituindo uma ampla e irrestrita captação de dados pessoais (dataficação), constituiu um capitalismo de vigilância mundial sem precedentes, com sistemas que monitoram, vigiam e controlam a vida social para gerar ações comerciais, políticas e sociais com interesses particulares, colocando a lógica da colaboração e da cooperação em suspenso (Lemos, 2021b). Polarização política, fake news, ondas conservadoras sobre comportamentos e ideias, autoritarismo, violência homofóbica, misógina, racista emerge em muitos países do sul e do norte. O que parecia aniquilado pela força da inteligência coletiva (Lévy, 2004), da conexão mundial, transformou-se, com a ajuda mesmo desta conexão, em violência física e simbólica, em controle das liberdades e do pensamento. O “comum” estava em ruínas. Pandemias apareceram como se fossem a versão biológica do mal sociopolítico (Lemos, 2021a).
Em 2022, era preciso resgatar o sonho da cooperação, da conexão, das narrativas que abririam para mundo possíveis. Mas, em 2030, veio o grande colapso. Países não conseguiram manter os índices prometidos de controle sobre as emissões de carbono (gerando a tão temida catástrofe climática do Antropoceno), guerras arcaicas e territoriais reapareceram e permaneceram (primeiro na Ucrânia, mas espalhou-se por toda a Europa), a destruição dos laços sociais pelas plataformas e a vigilância algorítmica do capitalismo global de dados (Zuboff, 2021) chegaram a níveis tais que o planeta entrou em colapso (econômico, social, tecnológico). Nada parecia ser possível ser feito para recuperar a vida humana na terra.
Como foi que essa geração, que chegou em 2222, superou o grande colapso de 2030, não se sabe muito bem. Mas, certamente, eles entenderam que aquela sociedade de plataformas, que se constituía como a nova infraestrutura da vida contemporânea em 2022 não era libertadora ou emancipadora, que estavam vivendo em um amplo domínio social por rastreamento de dados (economia, social, político, industrial), que o controle empresarial por grandes conglomerados privados (EUA e China) precisava ser regulado, que os algoritmos deveriam ser auditáveis e interrogados sobre suas ações a partir das dimensões ético-políticas por eles engendradas (precisamos de carros que dirigem sozinhos?, de câmeras de reconhecimento facial no espaço público?, de recomendação algorítmica em todos os sistemas?), que a esfera publica midiática estava sendo esfacelada por fake news e debates rasos e violentos, por estruturas de vigilância de dados ameaçando à vida privada, gerando mudanças significativas nas formas de trabalho, por governos agora reféns de uma tecnocracia dos algoritmos, uma “algocracia” (Danaher, 2016). Mas, como o fim do que era chamado de rede social naquele ano, os jovens começaram a escrever mais e mais. E a ler, mais e mais. A linguagem escrita e a leitura são como um vírus que estava adormecido e acordou?
Agnes ouviu dizer que o livro perdido na cafeteria apontava para novas catástrofes, agora impensadas pela estado de Pax Technica (Howard, 2015), social e ambiental alcançadas. Estaria ele perdido, ou teria sido, propositalmente, escondido? Sabe-se claro, que a catástrofe do Antropoceno, o limite da sociedade de plataformas e do capitalismo de vigilância e as guerras territoriais arcaicas de 2022 levaram a uma mudança de ação por parte de uma nova geração que buscava sair desse imbróglio. E saíram pelo afastamento das plataformas de redes socias e pela criação de forma próprias de produção de conteúdo. Não se sabe muito bem como, mas eles buscaram, na escrita e na leitura, nas narrativas mais longas, um refúgio. As ideias voltaram a florescer.
Os novos dispositivos (celulares, tablets e leitores de e-books) que no início do século XXI serviram para mensagens curtas, fake news e ódio em redes sociais privadas, desaparecerem, transmutados em biblios, novos dispositivos ubíquos em redes federadas públicas que facilitaram não só o acesso aos textos, como também a produção deles. Biblio era o novo “ciberespaço”, palavra que desapareceu, talvez por guardar a ideia de controle vinda da cibernética. Como seu termo original (um espaço de armazenamento de informação, de livros, que depois virou o próprio livro), biblio era ao mesmo tempo meio e dispositivo de/para acessar informações. Era o que se entendia agora como bibliotecas e livrarias, um local de grande circulação de textos canônicos e produzidos colaborativamente em profusão e também fomentador de encontros presenciais; da cultura. O metaverso, mais um devaneio para tirar os pés da terra, ficou para trás como um delírio que começou com o finado “Second Life” e terminou com o fracasso de Zuckerberg em 2030.
Agora nem se fala mais de online e offline já que essa diferença caiu definitivamente em desuso, embora tenha voltado com força em 2020 por causa da pandemia. O hibridismo imperou em todas as áreas como uma forma de reconhecimento de modos diversos de existência. O mundo padronizado pala lógica algorítmica deu lugar a um pensamento de múltiplas e emancipadoras narrativas que reivindicavam a circulação das palavras, não como lógica performativa para dar resultados reduzindo a complexidade do mundo, como era na época da sociedade de plataformas, mas como seres da transformação. Plataforma agora tinha o sentido de lugar para saltar e se libertar. E o biblio está embutido nas coisas, nos objetos comuns. As conexões se dão pelas coisas (tudo virou máquina de comunicar) disponíveis em qualquer lugar. Tudo comunica. Esse era um fator novo na história das narrativas, uma comunidade de leitores e escritores viva, em expansão planetária, autônoma, independente, respeitosa das liberdades, dos outros seres da terra e de outros modos de existência material ou espiritual.
Em 2222 estamos em um ambiente imersivo total de conexão e contato. Não faz sentido falar em nuvens (outra ideia celeste de 2022 para tirar os pés da terra - na realidade nuvem era datacenter consumindo água e energia não renovável). O biblio está no corpo, nos objetos, na terra! As interfaces desapareceram e toda conexão e interação informacional se dá na, através e com as coisas. Chegamos ao ápice da cultura da conexão aterrada, a uma “interface zero”. Não existem mais Facebook ou Twitter, não tem mais livros, jornais ou revistas de papel. Não há mais celulares, tablets e computadores. Só há biblios, objetos que desempenham “funções infocomunicacionais acopladas a todos os outros objetos, como uma superestrutura ubíqua, como árvores interligadas por fungos em uma floresta de dados. É como se tudo virasse livro e biblioteca e o conhecimento e a cultura florescesse em todos os lugares do planeta!
A cafeteria continua a ser o símbolo da sociabilidade no espaço público, assim como praças, escolas, cinemas. Agnes quer recuperar esse livro perdido e ver que história estaria sendo contada sobre o seu futuro, esse ímpeto universal e a-histórico da humanidade: para onde vamos? O último livro do mundo, está no porão, escondido nos vestígios de uma biblioteca do século XVII. Agnes e dois amigos encontram no porão um poeta, um profeta com o livro na mão, lendo. Eram versos:
“O poema dizia que ele havia passado a vida escrevendo uma história com começo e final, mas nunca que conseguira escrever o meio da história. Aquilo era estranho (...). Quando os três se deram conta, eles eram os únicos a seguir aquele profeta, digo, poeta. (....) puderam então sentir o cheiro de livro velho que emanava daquele homem, e pediram para o poeta lhes mostrar que livro era aquele que ele carregava no pescoço. O homem então, sem dizer nada, fez um gesto e abriu o livro bem na metade. Então eles puderam ver que justo naquele lugar havia uma página rasgada.” (Lemos, Maltez, Lacaz, p. 33-34)
O expresso para 2222 é a utopia de um mundo em que modos de existência diversos sobrevivem, que seres da ficção (Latour, 2013), como a música, a literatura, o cinema, as artes em geral salvaram o planeta por permitirem, enfim, que os humanos aterrissassem e se reconhecessem não como senhores da terra, mas como terráqueos, como os outros seres, produzindo narrativas libertadoras.
Devemos, para pegar esse expresso que nos levará, se tivermos sorte, à 2222, ficar, como diz Donna Haraway (2016), com os problemas (sem nostalgia do passado, ou utopias futurísticas), para enfrentar o presente e revelar nosso destino coletivo, comum. Reconhecer os problemas do antropoceno, do antropocentrismo, da sociedade de plataforma, do capitalismo de vigilância, da performance dos algoritmos que “criam” um mundo, é o primeiro passo. Talvez a geração de Agnes tenha feito isso. Nunca saberemos, pois falta a página do meio!
Referências
Amoore, L. (2020). Cloud ethics: Algorithms and the attributes of ourselves and others. Duke University Press.
Danaher, J. (2016). The Threat of Algocracy: Reality, Resistance and Accommodation. Philosophy & Technology, 29(3), 245–268. https://doi.org/10.1007/s13347-015-0211-1
Haraway, D. J. (2016). Staying with the trouble: Making kin in the Chthulucene. Duke University Press.
Howard, P. N. (2015). Pax technica: How the internet of things may set us free or lock us up. Yale University Press.
Latour, B. (2013). An inquiry into modes of existence: An anthropology of the moderns. Harvard University Press.
Lemos, A. (2002). Cibercultura: Tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Sulina.
Lemos, A. (2021a). A tecnologia é um vírus: Pandemia e cultura digital. Editora Sulina.
Lemos, A. (2021b). Dataficação da vida. Civitas - Revista de Ciências Sociais, 21(2), 193–202. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2021.2.39638
Lemos, A., & Manu, M. (2013). O último livro do mundo. Sesc.
Levy, P., & Costa, C. I. da. (2004). As tecnologias da inteligência: O futuro do pensamento na era da informática. Editora 34.
Zuboff, S. (2021). A Era do Capitalismo de Vigilância-Editora Intrínseca. Intrínseca.
[1] Participação na mesa redonda, “Redes culturais: trabalhos coletivos e colaborativos”. 13o. Seminário Internacional Biblioteca Viva: Culturas Digitais: Movimentos e Possibilidades. São Paulo. Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo. 6 de julho de 2022. O título, inédito e escrito para o evento, pega emprestado o argumento e a história contada no “O último livro do mundo”(Lemos & Manu, 2013).