Jornalismo, Plataformas, Materialidades e IA
Reflexões sobre plataformas e jornalismo; materialidades do virtual e IA e música.
Esses são textos bases dos meus comentários sobre cultura digital na Rádio Metrópole de Salvador.
Sobre plataformas e Jornalismo
A meta disse que vai cancelar todas as notícias vinculadas à imprensa profissional no Canadá em represália à lei que eles querem passar lá, fazendo com que essas plataformas tenham que negociar um pagamento pelo uso das informações das empresas jornalísticas. O precedente disso é a lei Australiana que está em vigor e as plataformas aceitaram. O projeto de lei 2630 aqui no Brasil queria legislar sobre isso, mas esse ponto foi retirado. Alias o projeto todo, infelizmente está no limbo.
Quem sabe essa separação seja salutar.
As mídias massivas (radio, TV, jornais) funcionam diferentes das mídias sociais digitais em suas plataformas. Pelo sua performatividade algorítmica, o objetivo das redes sociais é te agradar e fazer com que você veja aquilo que quer ver, e isso vem vinculado a dinâmicas afetivas da sociabilidade (afetos são bons e ruins, é bom lembrar). O que o usuário de plataformas vê é, temperado pelo algoritmo, baseado nas suas ações recentes, nos seus gostos, com quem interage etc. Já a mídia profissional tem, em tese, o papel de mostrar aquilo que o cidadão deve ver, o que seria de interesse público. O papel social e político do jornalismo é te informar sobre a dimensão do comum, queria ou não ver.
Ora, hoje estamos nesse embaralhamento de posições onde o que se vê em qualquer lugar é tomado como se fosse uma verdade científica, jornalística, jurídica. As fake news têm aí um terreno de expansão.
Se as plataformas não circularem mais as informações da mídia profissional, isso poderia dividir campos, indicar para as pessoas modos de circulação e de leitura da informação que são diferentes, e nessa diferença poderia haver uma qualificação do que se lê de acordo com o modo de sua posição (um texto acadêmico, uma conversa escrita em um chat, uma matéria jornalística...). Se isso for feito, nas redes sociais temos essa conversação aberta e plural sobre tudo, e que pode-se usar os algoritmos para ajudar a filtrar o que se quer ou não ver. Já no jornalismo profissional, esse novo leitor que não mistura tudo, vai buscar informações profissionalmente produzidas, acessando o que todos devem saber para se envolver na dimensão pública.
Seria, talvez, interessante. Mas a dificuldade maior é de sair da excitação do regime das plataformas e voltar para uma pausa consciente sobre os problemas do mundo. Vamos acompanhar.
Sobre Materialidades do Virtual
Esta semana, conversando com uma amiga, falei que estive participando de um evento sobre o Chat GPT e que havia destacado, entre outras coisas, as “materialidades do virtual. Ela se mostrou surpresa com a expressão dizendo: "olha que interessante, materialidade do virtual, sempre pensei no virtual como imaterial".
Eu sugeri a ela, como faço com meus alunos, que substituísse o adjetivo virtual, quando aplicado a questões da cultura digital, claro, pela expressão “mediado por computador”. Fazendo isso, as materialidades começam a aparecer: os equipamentos, os minerais e plásticos utilizados na sua construção, a infraestrutura de conexão, os programas, as lojas de conserto, as interfaces, a obsolescência e o lixo…
Se a fizermos isso, percebemos que o adjetivo virtual leva a equívocos, fazendo com que as pessoas pensem na imaterial ou na irrealidade do mundo digital. Nesse erro não entendemos os problemas atuais da cultura digital e apagamos outros, levando-os para a invisibilidade de sua materialidade.
Pois bem, no evento em que participei disse que, por exemplo, a energia consumida pelos data centers do Facebook para atender a demanda dos usuários brasileiros chega a mais de 114 mil MWh em um ano, equivalente ao consumo de energia de mais de 15,5 mil residências brasileiras pelo mesmo período. Que, segundo pesquisas, o bitcoin (moeda virtual) consome mais energia do que toda a Argentina. A mineração da criptomoeda consome 130,9 terawatt-hora por ano. Enquanto nossos “hermanos” consomem 125 TW/h ano.
E temos agora novos seres virtuais; os bots da intelig6encia artificial, como o Chat GPT. Pois bem, só no treino do algoritmo do GPT-3 (estamos no 4 hoje), a Microsoft usou 700.000 litros de água para resfriar os datacenters. Estima-se que apenas para a criação do GPT-3 ( 175 bilhões de parâmetros), sem contar o uso, foram consumidos 1.287 megawatts-hora de eletricidade, gerando 552 toneladas de dióxido de carbono equivalente. Isso é o mesmo consumo e poluição do uso de 123 veículos de passageiros movidos a gasolina usados por um ano.
Ou seja, o virtual não tem nada de imaterial e devemos pensar muito bem sobre a materialidade desses dispositivos, o consumo de água e energia, assim como quando esses equipamentos tornam-se lixo, viram zumbis voltam para perturbar a natureza de onde os seus componentes saíram.
Ainda sobre Materialidades – Cabos submarinos
Vou continuar a discussão sobre materialidades do digital. Acima, apontai para a questão do consumo de energia gerado e utilizado pelas tecnologias da Inteligência artificial. Agora vou destacar materialidades que fazem a internet funcionar. As estruturas que fazem com que o mundo funcione hoje. E ele funciona hoje por causa das redes de computadores que interligam todos e tudo, seja em redes sociais, redes de telecomunicação, mídia de massa, indústria, para a gestão e produção de suprimentos de insumos, ou seja, tudo. Sentimos isso quando vamos fazer uma consulta, comprar um produto, despachar um documento e recebemos a informação de que “o sistema caiu”. Ou seja, algo falhou na infraestrutura. Se puxarem a tomada que liga isso tudo, o mundo colapsa.
Pois bem, essa imagem não é apenas uma figura de retórica. Grande parte da circulação de dados no mundo hoje se faz a partir de cabos submarinos ao redor dos continentes, cabos de fibra-ótica. Uma recente matéria no Estadão de Moisés Naím aponta que apenas 200 cabos ligam toda a internet mundial. Pois bem, com a atual Guerra entre Rússia e Ucrânia e a tensão entre os EUA e a China, esses cabos podem ser alvos de ataques em águas internacionais, sendo de difícil imputação de culpa e de grande impacto mundial. Puxar essa tomada, ou melhor dizendo, cortar literalmente esses cabos com submarinos autônomos é uma passibilidade real. Assim, quando falarem pra você do virtual como ilusório, fictício, desmaterializado, nas nuvens, pense que alguém pode puxar o cabo e desligar todo o planeta. Nem precisa de uma bomba atômica para causar um mal de extensão planetária.
Sobre IA e a nova música dos Beatles
Circulou recentemente a notícia impressionante de que vai sair uma nova música dos Beatles. Isso mesmo, e com a voz de John Lennon. Isso será possível pelas proezas da inteligência artificial que consegue retirar a voz do Beatle assassinado de uma fita demo gravada em sua casa em Manhattan. Se ele gostaria que isso fosse feito, ainda não há inteligência artificial que possa esclarecer.
Mídias têm esse caráter fantasmagórico. espectral como diria o filósofo Frances Jacques Derrida. Ouvimos vozes, vemos imagens, lemos textos de autores que estão em outros lugares, ou já morreram, pela ação das tecnologias de comunicação que conseguem driblar constrangimentos do espaço e do tempo, como vocês estão lendo esse texto de qualquer lugar do Brasil e do Mundo. E isso desde as pinturas rupestres, a escrita até chegar à internet.
É interessante notar que quando Thomas Edison inventou o fonógrafo em 1877, que depois deu origem aos nossos tocadores e gravadores de música, o objetivo era gravar as vozes das pessoas para quando elas morressem pudessem ser ouvidas de novo.
Sir Paul McCartney recebeu da viúva de Lennon, Yoko Ono, uma fita cassete com a música que teria sido gravada em 1978. A inteligência artificial conseguiu dar nova vida à voz de Lennon retirando-a da fita cassete. O uso de tecnologia para reviver vozes e mesmo performances não é novo (lembrem de uso de hologramas de artistas mortos há alguns anos) e há muitos exemplos de uso de softwares e IA na música.
Paul McCartney disse que não usa a internet, mas que a IA é o futuro e que temos que ver onde isso vai dar. Certamente, mas não só ver. Temos que pensar em formas de regulação (a Europa acaba de passar um projeto de lei) pois a recriação de vozes e imagens de pessoas, vivas ou mortas é uma ameaça à democracia com a possibilidade de criar fatos falsos, indistinguíveis dos verdadeiros, assim como outras consequências em outros domínios da vida social.
Essa técnica em vídeo é chamada de Deepfake. Ele pode borrar de uma vez por todas a nossa percepção do que é verdadeiro e do que é falso. O potencial para aumentar os problemas relativos à desinformação e as fake news vão aumentar bastante nos próximos anos.
No caso da música dos Beatles, tendo Paul McCartney à frente é de se esperar uma grande obra. Então viva a IA. Mas como toda técnica seus problemas são imanentes. Ela precisa ser discutida vislumbrando seus desdobramentos. A sociedade deve se posicionar, com inteligência, sobre os destinos da IA.
PS. Agora temos Elis regina de volta, pela deepfake, feita a partir de um modelo real no comercial da nova Kombi da VW, cantando ao lado da sua filha. Estamos na era da mídia Zumbi???
Tenho estudado sobre a TAR como aporte metodológico para a minha pesquisa sobre pedagogia vocal do canto popular. Tenho assistido a inúmeras palestras suas sobre o tema e tb sobre a cultura digital, disponíveis no Youtube, além dos artigos e livros que também venho lendo diariamente. Agradeço por tantas contribuições inspiradoras! Não fazia ideia do consumo de energia envolvido na mineração de bitcoins nos data centers. Transmiti a informação para o meu filho de 27 anos, que já esteve envolvido nesse universo. Muito importante pensarmos na materialidade do "virtual". Quanto à música inédita dos Beatles e a propaganda da VW, unindo Elis e Maria Rita, penso que Hennion traz considerações interessantes no sentido de pensarmos sobre a necessidade de atualização permanente da escuta, e dos novos significados produzidos, envolvendo toda a rede heterogênea de mediadores. Eu, particularmente, achei estranho ver a "boneca" Elis Regina, ao lado da filha, mas ao mesmo tempo emocionante como criação da IA e o seu potencial de mobilizar afetos. Vou aguardar ansiosamente a faixa inédita do John Lennon, que não sabia estar a caminho. Obrigada, professor! um abraço do Rio de Janeiro.
Olá, professor André Lemos, se me permite fazer uma pergunta, gostaria de saber se caberia analisar o comercial da Volkswagen, com Maria Rita e Elis Regina, a partir do conceito de translação de Michel Serres, na ideia de que "qualquer acontecimento histórico é multitemporal, remete para o passado, o contemporâneo e o futuro simultaneamente". Desde já agradeço pela atenção.