Foto: Divulgação. Detalhe da capa
A noticia de que o Prêmio Jabuti desclassificou a ilustração do livro “Frankenstein” feita pelo designer Vicente Pessôa com uso da inteligência artificial, indicado como semifinalista, gerou debate e artigos em jornais e mídias sociais. O designer não escondeu que fez uso do Midjourney, inteligência artificial generativa (IAG), assinando: “Vicente Pessôa e Midjourney”.
Os argumentos, grosso modo, situam-se em três núcleos centrais: a questão da autoria; da artisticidade e do plágio. O Midjourney (ou qualquer outra IA) retiraria o autor humano do centro, não seria, portanto, arte e, ao copiar imagens e textos da internet sem pedir a licença dos autores, cometeria plágio.
Vou discutir rapidamente esses três pontos.
Sobre autoria
Devo lembrar que arte vem do grego techné, que chamamos também de técnica. Toda obra humana passa pelo uso, como parceiro, de algum dispositivo artificial. A criatividade humana é consequentemente um processo híbrido, fruto da sinergia produzida pela capacidade simbólica humana e o uso de artefatos que materializam ideias e atitudes. Retire todos os objetos e artefatos da nossa frente (e da nossa formação) e vejam se conseguem enxergar alguma emergente criatividade! O humano sem artefatos não existe!
Pessôa assinou a imagem da capa do livro compartilhando a autoria com o MidJourney, sendo, portanto, honesto e cuidadoso. A obra foi retirada. Se escrevermos, na assinatura, por exemplo, “escritor com computador ou caneta e papel e word”; “designer ou artistas, ou fotógrafos com photoshop”, “fotógrafo com aparelho fotográfico e filmes”; “dj’s com samplers”… teríamos, nesses casos, autores reconhecidos? Sim, pois nem é mesmop preciso indicar o artefato que passa a ser purificado e transladado na “criativadade do artista”. Mas se for “designer e Midjourney”, não? E se ele não dissesse que produziu a obra com a IA, seria ausado de má-fé! IA tem que explicitar.
A questão de dizer que a IA executa coisas sem que o humano atue é uma falácia, da mesma forma que pensar que a escrita não moldou nossa forma de pensar e escrever , ou que o computador/software no qual escrevemos, ou ou olho moldado pelo dispositivo de captura (fotográfico ou fílmico) são neutros. No livro “Ioga”, do escritor francês Emmanuel Carrère, em um determinado momento o personagem (o próprio autor) encontra o amigo editor em uma festa e conta para ele que escreve as suas obras usando apenas o dedo indicador da mão direita. O editor fica surpreso e diz que ele deveria aprender a datilografar. Com essa “técnica”, dizia o editor, o seu pensamento iria fluir de uma maneira muito mais rápida e, provavelmente, ele escreveria livros diferentes. Todo artefato produz autor e obra. “Nossos instrumentos de escrita estão trabalhando em nosso pensamento”, escreveu Nietzsche sobre a máquina de escrever.
Sobre artisticidade
DJ’s já foram acusados de não serem músicos e a fotografia de não ser arte. No entanto, exemplos de uso da tecnologia na arte são abundantes: arte postal dadaísta do começo de século passado, as máquinas autômatas de Tinguely, as pinturas feitas por telefone de Lázló Moholy-Nagy no começo do século passado (como bem lembrou a querida Gisele Beiguelman em artigo sobre a polêmica) , ou atualmente as esculturas 3D, o video-mapping, a música eletrônica…. Mais recentemente, o artista alemão Mario Klingemann criou uma série de obras de arte geradas por redes neurais generativas para produzir arte abstrata e surrealista; o artista francês Patrick Tresset trabalha com robôs que desenham retratos de pessoas em tempo real.
Em setembro do ano passado, uma pintura feita por intermédio de uma IAG ganhou um concurso nos Estados Unidos. O artista assinou “Jason M. Allen via Midjourney”, assim como Pessôa assinou a capa do livro. A fotografia “O Eletricista”, do fotógrafo alemão Eldagsen, ficou em primeiro lugar na categoria criativa na competição aberta da Organização Mundial de Fotografia. A foto foi criada com o uso de IAG. Ele recusou o prêmio, não por ser contra, mas por achar que não houve debate sobre o tema. O uso de IA na arte está em franca expansão.
Sobre plágio
As IAG buscam texto e imagens nos bancos de dados da internet e montam a sua resposta, com a intervenção do designer, no caso da imagem em questão. Ora, não fazemos o mesmo o tempo todo? O que monto aqui como argumento próprio nesse comentário não vem de outros textos, autores, pesquisas aos quais tive acesso? O que produzimos vem sempre de alguma influência que não explicitamos, ou notamos. Alguém pensa sem entrar em uma teia de artefatos e obras anteriores?
Copiar e roubar textos ou ideias é outra coisa. Até o presente momento ninguém (ou seja, nenhum autor que tenha feito partes da imagem da capa - com um computador e algum software de edição, certamente) reclamou. Logo, a imagem não é um plágio, até que se prove o contrário. Isso significa que o designer (ou eu escrevendo esse texto), com nossos artefatos que lhe deram suporte, não nos apropriamos de outras obras? Não.
A criatividade, a inteligência e o conhecimento se criam na circulação, na apropriação de ideias buscando fazer algo novo, não no fechamento. A ideia antropocêntrica de um artista livre de influências e sem uso de tecnologias para materializar a criação é uma visão simplória e equivocada.
Um jabuti?
A atitude do Prêmio Jabuti revela desconhecimento sobre a arte e é assim anacrônica e lamentável. Os organizadores da premiação, por banir a obra, não vislumbraram a oportunidade para a proposição de um bom debate, vinculando a imagem produzida com a ajuda da IA ao tema do livro: Frankenstein, uma criatura que se volta contra o criador. Perderam assim uma excelente oportunidade de lançar o debate na boa via. Bom, a polêmica se estabeleceu, mas de forma equivocadamente enviesada, na minha opinião.