Vou fazer um comentário sobre o vídeo feito por inteligência artificial, produzido logo após Trump anunciar seu plano de comprar e ocupar a Gaza para transformá-la em um balneário para ricos, e que foi ontem republicado pelo próprio presidente americano.
Não vou falar do absurdo que é o conteúdo do vídeo em si e da indecência da proposta: limpeza étnica, desrespeito à diferença, prepotência plutocrática, narcisismo, usurpando um povo de sua terra histórica, mas da peça propriamente dita.
Se estivéssemos em outro momento, em outra realidade, aquela peça seria taxada de deepfake, ou seja, manipulação, por inteligência artificial, de imagem de pessoas reais fazendo coisas fictícias, como se estivessem mesmo no local: Trump, Netanyahu, Elon Musk; inclusive com vendas de bonequinhos banhados a ouro do próprio presidente Trump e com uma estátua gigantesca do mesmo em plena praça dessa Gaza reconstruída.
Como deepfake, o objetivo dos produtores do vídeo seria denunciá-los como genocidas, fascistas, imperialistas, por participarem de uma cena em que o povo do lugar é expulso para dar lugar a grandes hotéis e carros de luxo, inclusive com imagens de mulheres dançando e todos os estereótipos depreciativos da cultura árabe.
Eles reagiriam dizendo: “isso é deepfake para uso político e industrial, produzindo uma imagem negativa de nós mesmo. Não compactuamos com isso”.
Mas há uma inversão aqui: a irrealidade da realidade.
O vídeo parece ser deepfake mas, na realidade, é uma publicidade imobiliária da proposta feita pelo atual presidente americano visando transformar uma ficção totalitária em construção real.
Ele é não o deepfake, mas “deepreal”, encenação de um delírio como realidade profunda, ilustrando a seriedade da proposta do atual presidente da nação mais poderosa do planeta.
A republicação do vídeo por Trump mostra que o deepfake é mesmo levado a sério como um “deepreal”.
Enquanto o deepfake é o falseamento de pessoas e cenas em um mundo de mentira, o vídeo que chamo aqui de “deepreal” busca, pelo uso da IA, tornar um delírio totalitário, arrogante e violento em uma construção possível a partir da circulação de uma imagem que vai fazendo seu papel publicitário, moldar o futuro.
Bom carnaval.
E existem pessoas que o consideram herói e modelo de político a ser seguido. Lembro de discussões de 20 anos atrás sobre a importância de anotar que uma imagem tinha passado por manipulação no Photoshop. Imagine o estrago que imagens como essas podem provocar, visto que muita gente que consome não é capaz de distinguir o que é real e o que é criação de AI.