No “Nascimento da Tragédia” (1977), o filósofo alemão Nietzsche destaca duas figuras opostas que simbolizam a arte grega antiga: Apolo, o deus da ordem e da razão, simbolizando as artes plásticas, e Dionísio, divindade da desordem e da festa, as outras artes.
Ao tensionar a arte grega desta forma, Nietzsche destaca dois regimes sociais, andando lado a lado e em permanente conflito, o apolíneo e o dionisíaco como impulsos próprios da tragédia grega mas, em uma visão mais ampla, da condição humana.
Pois bem, se pensarmos a partir desses dois modelos, podemos dizer que o Carnaval é a festa de Dionísio, como era o seu culto na Grécia, com estrangeiros, música, bebedeiras e transes que contradiziam a ordem social.
Aqui no Brasil e na Bahia, pois temos o nosso panteão próprio, a festa oficial passa as chaves da cidade para o rei momo, personagem burlesco que autoriza a desordem carnavalesca, deslocando simbolicamente o controle da cidade do prefeito (apolíneo) para o bufão (dionisíaco), e nas ruas os rituais do “padê de Exú” (o nosso Dionísio), abrindo os caminhos da festa. O carnaval é esse momento de largar as amarras da razão e, como se diz aqui, cair na loucura, na folia (do francês folie, loucura).
A tecnologia, ao contrário, é resultado de uma relação intrínseca do desenvolvimento de artefatos e processos com a ciência, com o pensamento racional, experimental universal. Ela é uma “tecnociência” apolínea, que visa ampliar os domínios do homem sobre a natureza, infringindo a esta uma nova ordem, forçando-a a revelar seus secretos e de submetê-la à ação ordenadora da técnica (Heidegger, 1958).
Assim, ouvinte, você já pode perceber que carnaval e tecnologia convivem com a tensão dos opostos modelos apolíneo e dionisíaco, colocando-os lado a lado.
Isso em tese, pois a realidade, ou o mundo da vida, é bem mais complicada. Certamente o carnaval é inversão da ordem, mas a nossa vida no dia a dia não é tão ordenada assim, sendo o carnaval uma amplificação do que somos o tempo todo. Parecemos modernos, racionais e objetivos, mas somos movidos pelo improviso, tomados pelos erros e desordens, agindo sem muita direção ou lógica. O dionisíaco impera também no dia a dia.
Da mesma forma a tecnologia, fruto da razão e da ciência ela nos leva a fazer coisas irracionais, desprovidas de responsabilidade ou inteligência como, por exemplo, desenvolver dispositivos e usos de matérias e energias que estão destruindo o lugar que habitamos, ou sistemas de comunicação que potencializam as nossas mais viscerais reações.
Assim é a cultura digital. Ela surge a partir da disseminação dos computadores e suas redes visando automatizar o cálculo e o ordenamento informacional do/sobre o mundo (computer, em inglês, o que conta, ordinateur, em francês, o que coloca ordem, ou informática, do francês informatique, como informação automática) e se transforma, com a “guerrilha” da microinformática e da internet (Breton, 1990), em uma máquina planetária de conexão, de comunicação multimodal e viral na qual razão e desrazão convivem lado a lado como atesta o atual estado das plataformas de redes sociais. Frutos de tecnologias apolíneas, despertam sentimentos e ações dionisíacos.
Essa tensão entre os modelos está presente na nossa vida diária. Não é possível isolá-las como se fossem independentes. Na realidade, nossa existência é dirigida por um contínuo “apolíneo-dionisíaco” agindo o tempo todo.
Isso aconteceu neste carnaval 2023 que se encerra nesta quarta-feira de cinzas (a duras penas por aqui - em Salvador - , é bem verdade). A festa momesca se realiza em um ordenamento da desordem (blocos, trio e camarotes, poderes púbicos organizando os fluxos e mesmo resolvendo rapidamente problemas que no período apolíneo levaria meses, como o concerto do rompimento de duas adutoras em avenidas próximas ao carnaval em menos de 24horas).
A tecnologia digital propiciou, ao mesmo tempo, a circulação da folia como uma ferramenta dionisíaca, através das redes sociais com textos, fotos e vídeos, mas também como mecanismo de vigilância e ordenamento policial, principalmente com o uso de portais, drones e câmeras espalhadas com reconhecimento facial, parcerias com aplicativos de trânsito e para deslocamento de pessoas, localização de trios, programação da festa, venda online de ingressos etc.
A festa é caos, mas também se impõe com ordem. A tecnologia é ordem, mas também instrumento de circulação de emoções.
A nossa tragédia diária vem dessa mescla do apolíneo e do dionisíaco. É o que nos perturba e também o que nos salva: uma carnavalização da existência no dia a dia (no nosso comportamento perante o mundo, na apropriação do uso das tecnologias digitais) e uma existência carnavalizada (nos momentos de exceção, como o carnaval e outras festas). Esta tensão nos mantêm humanos, demasiadamente humanos. Que tristeza é um povo sem carnaval.
Referências
Breton, P. La tribu informatique. Paris, Métailié, 1990.
Heidegger, M. La question de la technique. In Essays et Conférences. Paris, Gallimard, 1958.
Neitzsche, F. La naissance de la tragédie. Paris, Gallimard, 1977.