A Precariedade da Virtualidade
Palestra de abertura do evento “Psicanálise e Virtualidades. O sujeito do desejo e a sobredeterminação algorítmica” da Associação de Psicanálise da Bahia. Salvador – BA, 22 de março de 2025.
É uma honra estar aqui hoje para discutir esse tema. Não se sei entendo bem o problema. Colocado assim parece o sintoma (desculpem) de um equívoco. Ou seria bem colocado, resultando da boa compreensão do problema e se for esse o caso talvez eu vá dizer apenas obviedades para vocês. Meu objetivo é tentar desfazer a ideia, muito comum, que está por trás quando dizemos escola virtual, vida virtual, mundo virtual, ou seja, o virtual e a virtualização um mundo ou uma ação ilusórios, fictícios, produzidos pelas tecnologias digitais e os perigos que daí emergem de nos perdermos e nos alienarmos do real. Vou tentar retirar esse equívoco de pensar virtual como oposto ao real e a virtualização como oposta à realização.
Mas talvez eu esteja dando um faux pas, pois ninguém melhor do que psicanalistas para saber que não há aqui o real e ali o irreal pois o real é o indiscernível, o que não se expressa no simbólico e na linguagem (Lacan). Estou confuso. Ou o tema está bem colocado e vocês percebem que a virtualidade está em tudo e não tem nada de especial em relação a cultura algorítmica, embora ela deva ser estudada para revelar suas potencialidades e atualizações na composição da realidade. Se esse for o caso não tenho nada a dizer para vocês. Mas se vocês pensam na imaterialidade do digital e no corte da realidade, então posso tentar dizer alguma coisa. Como agora é tarde, vocês terão que me ouvir partindo do principio de que a virtualização, o tema, é aqui o sintoma de um equívoco.
A questão da virtualidade posta desta maneira deve ser abandonada, não porque ela não exista, mas porque ela está em tudo. A virtualidade não é uma questão de descolamento do real; é uma dinâmica constitutiva da realidade. Quando escrevo este texto, por exemplo, estou constantemente virtualizando e atualizando ideias. O que entra e o que sai são escolhas, são virtualizações do problema que se atualizam no texto final.
Portanto, proponho uma reflexão que questiona a noção comum de "virtual" como algo desmaterializado, distante do real, e convidá-los a pensar a virtualidade como uma dinâmica intrínseca à realidade, com implicações éticas, políticas e subjetivas profundas, material e discursivamente imbricado na produção do sujeito na atual cultura algorítmica. Encarar essa dimensão material é fundamental para não produzirmos uma crítica que prece profunda, mas que na minha opinião não tem força mobilizadora para enfrentar os graves problemas da dataficação da vida (das relações, do conhecimento e da natureza) e suas expressões mais atuais (negacionismo, isolamento, polarização, desinformação, vigilância, invasão de privacidade, crise climática, vieses de “raça e gênero”...).
As tecnologias digitais estão reconfigurando nossas vidas, nossas relações e nossas subjetividades. Mas não há subjetividade sem implicações materiais discursiva, e isso existe desde o Homo Faber. Por questões matérias discursivas entendo a compreensão de não se pode separar discurso e “matéria” na análise dos fenômenos. Essa abordagem contrasta com o construtivismo social tradicional que tende a privilegiar o discurso sobre a materialidade, e também dos materialismos anteriores (histórico, marxismo) que tendem a privilegiar as “infraestruturas” econômico-políticas. A discursividade é uma prática entrelaçada à materialidade.
A questão da Virtualidade como sinônimo do que acontece nas redes sociais, nos computadores, na IA é verdadeira, mas somente se reconhecermos que ela não é exclusiva, pois parte da dinâmica da realidade como alternâncias sem fim de processos de virtualização e atualização. Eles estão na constituição desse ensaio (o que entra e sai são escolhas ou virtualizações do problema para atualização), na presença de vocês aqui hoje, no que vão pensar e articular a partir da minha fala... Virtual não tem nada a ver exclusivamente com eletrônico. Não uma questão de descolamento do real, de mundo falso, ilusório e fictício, pois tudo não passa de narrativas ficcionais. Se insistimos nisso, produzimos uma virtualidade precária que não ajuda a enfrentar os desafios atuais: um jovem não está no outro mundo quando nas redes sociais, como não estaria um outro preso em uma biblioteca.
Espero poder extirpar esse grave equivoco que não nos permite nem entender o nosso lugar como sujeitos, nem politizar as questões éticas-morais, econômicas, ambientais da atual cultura digital, portanto, graves, se aceitamos a ruina do mundo contemporânea e a crise climática do antropoceno que é também uma maneira de falar mal sobre outros modos de existência. A questão é como produzir bom viés, boas virtualidades para reconhecer diferentes modos de existência e construção de mundo que não aniquile a vida na terra.
Vou abordar os seguintes tópicos do que chamarei da “precariedades da virtualização’.
1. O virtual e o atual como dinâmicas da subjetivação.
2. A materialidade do digital precisa ser reconhecida
3. Sujeito Informacional produzido pelos sistemas algorítmicos e redes sociais.
4. Agora estamos no “brain rot”?
1. Virtual
Começo com uma provocação: o virtual, tal como comumente entendido, é um erro. A ideia de que o mundo eletrônico é um espaço desmaterializado, uma "nuvem" flutuante, falso e fora da realidade, é uma ilusão. O digital não é virtual no sentido de irreal; ele é tão real quanto qualquer outra dimensão da nossa experiência. Quando falamos de redes sociais, algoritmos, inteligência artificial ou realidade virtual, estamos lidando com fenômenos concretos, materiais, que têm efeitos reais sobre nossos corpos, mentes e relações.
A noção de virtual como algo separado do real é um equívoco que nos impede de compreender a complexidade do mundo contemporâneo. O virtual não é o oposto do real; é uma de suas dinâmicas. O filósofo Gilles Deleuze já nos alertava que o virtual não se opõe ao real, mas ao atual. O virtual é uma potência, uma rede de possibilidades que se atualiza no real. O mundo digital é uma expressão dessa dinâmica: ele atualiza possibilidades, mas não deixa de ser real. O virtual e o atual são dinâmicas da subjetivação e de todas as coisas que precisam passar por outras para existir. Somos seres atravessados por múltiplos modos de existência que se atualizam em balanço com as virtualidades. Somos seres da metamorfose, da técnica e da ficção, a partir da perspectiva de Bruno Latour no “Investigação sobre os Modos de Existência. Uma antropologia dos modernos”.
O virtual para a informática não é um mundo paralelo, fictício, mas mediado por computadores. Digo aos meus alunos: sempre que vocês ouvirem a palavra virtual substituam por “mediado por computador” isso vai nos retirar dessa ideia concebida de que o virtual é fora do mundo. Relações são sempre mediadas por artefatos, sendo o básico a língua, mas as mídias, a religião, as artes, a literatura. Não se trata de negar seus status ontológico por isso. Isso não significa que são todas iguais e que mobilizam as mesmas performances. Mas somos seres entrelaçados por mediações com humanos e não humanos em redes sociotécnicas amplas. Ou há mediações ou não há nada. Tudo é construído, o construído não é necessariamente o falso. O construído deve ser sempre objeto de questionamento ético-político.
2. A materialidade do digital precisa ser reconhecida e para isso é fundamental entender que as tecnologias digitais não são virtuais, desmaterializadas, situadas na "nuvem". Interfaces, códigos, regulamentos, leis, ideologias, sonhos de futuro, de presente e de passado, performances, visibilidade e invisibilidade de informação, datacenters, cabos, satélites, dispositivos... tudo isso tem dimensão ético-política fundamental e só podemos apreendê-la se abandonarmos a ideia do virtual e pensarmos em procedimentos "materiais-discursivos" entrelaçados. Somos, como vimos, mais Homo Fabricatus do que Faber pois entrelaçados a amplas redes sociotécnicas. O problema não é o artificial ou o virtual. Onde não estariam o artificial e o virtual na cultura humana? O problema é outro. Questionar as construções e não defender a suposta inteligência humana inata (existe sem artefatos?) ou os objetos como mundo da ilusão.
Tenho insistido na tese de que o virtual, o digital, não operam fora das materialidades do mundo, que tudo que fazemos nas redes e com essas tecnologias está interligado por máquinas, cabos, satélites, centros que armazenam, processam e distribuem dados consumindo matéria e energia da Terra. Quando ignoramos a materialidade do digital, deixamos de perceber como essas tecnologias moldam nossas vidas, nossas subjetividades e nossas relações de poder. Por exemplo, os algoritmos das redes sociais não são meros códigos abstratos; eles são performativos. Eles produzem efeitos concretos sobre como nos relacionamos, como nos informamos, como nos vemos e como somos vistos. A visibilidade e a invisibilidade da informação são questões políticas. Quem decide o que é visível e o que é invisível? Quem controla os fluxos de informação? Essas perguntas só podem ser respondidas se abandonarmos a ideia de que o digital é virtual e pensarmos em termos de procedimentos materiais-discursivos.
Uma vez, conversando com uma amiga, psicanalista, falei que estive participando de um evento sobre o Chat GPT e que havia destacado, entre outras coisas, as “as materialidades do virtual”. Ela se mostrou surpresa com a expressão dizendo "olha que expressão interessante, materialidade do virtual, sempre pensei no virtual como imaterial". Se não sairmos dessa visão, as análises serão irreconhecíveis sobre suas dimensões pragmáticas. Eu sugeri a ela a dica que dou aos meus alunos, como citado: “virtual = mediado por computador”. Fazendo isso, as materialidades começam a aparecer: os equipamentos, os minerais e plásticos utilizados na sua construção, a infraestrutura de conexão, os programas, as lojas de conserto, as interfaces… Se fizermos isso, veremos que o adjetivo virtual leva a equívocos, fazendo com que as pessoas pensem na imaterial ou na irrealidade do mundo digital. Nesse erro não entendemos os problemas da cultura digital e apagamos outros, como os de sua materialidade.
Não vou citar números aqui, mas há muitos dados sobre a quantidade de energia, minérios e água que os dispositivos, os datacenters, e a IA utilizam para existir. Além é claro de muitos trabalhadores em regimes amplos desde desenvolvimento de modelos e de treinamento e monitoramento, sendo estes precários e de baixa remuneração; além do descarte de lixo eletrônico. Ou seja, não tem nada de imaterial no digital e devemos pensar muito bem sobre a materialidade e as discursividades sobre desses dispositivos. Como falei no início dessa conferências, a virtualidade está aqui, mas como está em tudo, produzindo e desfazendo mundo ficcionais e agencias especificas. A “nuvem” não está pairando sobre nossas cabeças, nem os dados circulando de forma imaterial e fantasmagórica de e até os nossos computadores. Ela é uma infraestruturas que faz com que o mundo funcione (redes de computadores e redes de telecomunicação com satélites, cabos submarinos, extração de minerais e produção de dispositivos e insumos...).
3. O sujeito informacional performativo.
A materialidade das redes sociais (machine learning, recomendação algorítmica...) e dos sistemas inteligência produzem um sujeito informacional performativo, um perfil que produz um sujeito infra e supraindividual. Certamente o individuo (complicado e complexo, de fato uma ficção produzida pelas diversas estruturas de poder - Foucault) é sempre plural – atravessado – e irredutível aos perfis dataficados como redução algorítmica da complexidade do mundo (é o que fazem, dar um resultado inequívoco, tentam ao menos, diante de um mundo indiscernível). Sabem muito pouco desse “divíduo” (Deleuze), mas funciona e nos faz acreditar nessa produção de efeitos, como “é disso mesmo que gosto”, “sou assim mesmo”...
Dados aqui significa tanto a forma de classificação e medida; como “oferta”: somos classificados como brancos, pretos, cis, transgênero, brasileiro, com traços de personalidade, números sociais... E assim somos ofertados à sociedade. Sem isso não existimos. Isso tudo vem sendo construído materialmente com formulários, questionários, certificados, testes, métricas, manuais que vão nos produzir como um determinado tipo de sujeito para ser performado na sociedade.
Os dados não são apenas uma representação daquilo que somos, mas nos produzem como sujeitos reconhecidos e nós assim nos reconheceremos. Informar vem do latim informare, dar forma. Porque que tenho que “in-formar” o meu gênero ou a minha cor em um questionário? Por que tenho que fornecer meu CPF? Ora isso produz uma “pessoa física” e um sujeito cis ou LGBTQI++... Certamente essa produção pode ajudar nas políticas públicas afirmativas, mas também na discriminação.
Somos dados, somos sujeitos informacionais. Esta é a tese de Colin Koopman desenvolvida no livro “How We Became Our Data” (University of Chicago Press) afirmando que tudo isso vai começar em 1920 nos Estados Unidos criando um poder não apenas sobre a vida dos individuo (biopoder), mas um poder inerente ao próprio dispositivo informacional. Esse infopoder é um aparato informacional que visa se alimentara de informação alcançando seu ápice na logica de dataficação e performances algorítmicas atuais. As plataformas e redes sociais funcionam a partir desse indivíduo-dado, nos indexando em determinados tipos de perfis que vão gerar ações sobre nós mesmos, oferecendo coisas que aceitamos e reconhecemos como pertinentes.
As redes sociais e seus algoritmos produzem pragmaticamente (e não de forma fictícia ou irreal, “virtual”) um sujeito informacional performativo (números pessoais, senhas, perfis psicológicos, financeiros, reconhecimento de sentimentos por analise facial...). Isso significa que nossa subjetividade é cada vez mais moldada por nossas interações com essas tecnologias. A face, por exemplo, diferente da dialógica da interação (como aqui nessa conferência) torna-se um inputperformativo na produção dataficada de um perfil proativo de um individuo e sobre uma coletividade.
Não somos meros usuários passivos; produzimos ações intencionais mas deixamos muitos dados de forma involuntária e ao mesmo tempo compulsória (os sistemas captam tudo, desde cliques a buscas canceladas). Somos performados. Sair da discussão simplória de que somos mais do que os dados não ajuda a enfrentar o problema da dataficação da vida (como chamei em outro trabalho). Nossas ações online são capturadas, analisadas e transformadas em dados que, por sua vez, alimentam algoritmos que nos devolvem uma imagem de nós mesmos e dos outros.
Nas redes sociais, a IA (machine learning) das plataformas medeiam nossas experiências digitais que operam necessariamente por redução. Categorizam, segmentam, classificam, preveem comportamentos com base em simplificações estatísticas da experiência humana. O sujeito é reduzido a padrões de cliques, tempo de visualização, histórico de buscas, localização geográfica - dados que permitem previsões comportamentais, mas que jamais capturam a totalidade da experiência subjetiva. No entanto, estes algoritmos são profundamente eficazes. Ao prever comportamentos, eles também os induzem. Ao categorizar preferências, eles as moldam. Ao segmentar populações, eles criam comunidades isoladas em bolhas informacionais. O algoritmo que "sabe" que você está deprimido não apenas identifica sua depressão - ele participa ativamente de sua configuração ao selecionar conteúdos que reforçam estados afetivos específicos. Este é um ponto crucial: os algoritmos sabem relativamente pouco sobre a complexidade infinita de cada sujeito, mas seu poder não deriva de um conhecimento profundo, e sim de sua capacidade performativa de modular atenção, afeto e comportamento através de intervenções estratégicas no ambiente informacional. Portanto, nada de virtual, mas material e discursivamente produzido,
Para isso acontecer é necessário um poder, bem material, que Koopman chama de infopoder, o poder da formatação de tudo em dados performativos. Como aludi no inicio, a ideia de um indivíduo delimitado por uma fronteira bem constituída, de uma vida privada como propriedade desse sujeito, não passa de uma ilusão operada para dar conta de questões epistemológicas, culturais, econômicas ou legais bem pontuais. Se somos resultado do entrelaçamento com as coisas, nada mais natural do que afirmar que somos, nas sociedade avançadas, os dados.
Não são os dados que são pessoais, mas a pessoa é que é produzida (insisto, pragmaticamente) a partir deles! E isso de tal forma que acreditamos que somos o que encontramos nessas categorias, gerando assim um efeito performativo de verdade muito eficaz. Por exemplo achar que as recomendações algorítmicas acertam. Ora, estamos sendo treinados mais uma vez. Como éramos (somos) ao entrar em uma livraria, supermercado ou museu (vendo o que se deve ver primeiro ou em destaque). A ideia de uma essência que afirma que não somos os dados baseia-se sempre numa postura superficial de defesa de uma essência humana não artificial ou tecnológica. A formatação dos dados se dá não por virtualidade ficcionais, mas por formulários bem-produzidos para gerar dados operacionalizáveis.
Reconhecer esse infopoder é levar em consideração as dimensões materiais e discursiva de constituição do sujeito em relação aos dados e a informação digital. Ele é um poder inerente ao próprio dispositivo informacional, um aparato que se alimenta de dados, alcançando seu ápice na logica de dataficação e performances algorítmicas atuais. Nada disso é “virtual”, embora seja sempre jogo de possibilidades (virtualizações) e atualizações na construção ficcional da realidade.
O desafio é politizar não apenas o controle informacional sobre o indivíduo ou sobre a sua vida, mas de esmiuçar a formação do infopoder nele mesmo. Se somos nossos dados, que dados são coletados, por que dessa e não de outra forma, como a formatação pode se transformar em uma questão política? Se ficamos na virtualização não reconheceremos esse trabalho de formatação que “é político e é essa formatação são atos de poder que nos sujeitam a operações que nos mantêm presos a dados” (Koopman, 2020, p. 156). Consequentemente mais do que nos preocuparmos com a desmaterialização e o outro mundo do virtual, devemos sempre perguntar como a informação é formada? Por quais instrumentos? Em que situações? Por quem ou quais instituições? Com qual justificativa? Com que frequência? O que essa formatação produz materialmente e discursivamente a curto, médio e longo prazos? Quais as vantagens e desvantagens dessa formatação?
Vejamos a IA. Por exemplo, estamos sendo treinados, mais do treinando a IA. Ela nos molda, nos adapta às suas lógicas, muitas vezes sem que percebamos. Ela redefine nossas expectativas, nossos desejos, nossas formas de pensar e agir. E, no processo, nos treina para aceitar sua presença como algo natural, inevitável. Isso não significa fatalismo. Pelo contrário, precisamos estar atentos a como a IA e outras tecnologias digitais estão nos transformando. Precisamos questionar as lógicas que elas impõem e buscar formas de resistir à redução da nossa experiência a padrões algorítmicos.
Como toda inovação técnica, ela nasce cheia de potencialidades e estas são destacadas por indústrias, governos, cientistas, empresários... Vamos ficar mais produtivos, criativos, eficientes, e mesmo inteligentes... Há também os que alertam para os malefícios. Ambos fazem a mesma coisas: ela já chegou e vai ficar, para o melhor ou o pior, e precisamos estar receptivos, para uma coisa ou outra. Vamos sendo treinados pelos discursos, introjetando o imaginário assim construído e cognitivamente nos preparando para pensar como uma IA. Isso já acontece com as plataformas de redes sociais, nas quais, para viralizar e monetizar, usuários devem saber, entender e concordar com a sua gramática, agindo como se fossem o próprio algoritmo. Aprendemos rapidamente quais tipos de frases são mais bem compreendidas pelos assistentes virtuais, que gestos são mais facilmente reconhecidos pelos sistemas de reconhecimento de movimento, que expressões faciais são corretamente interpretadas pelos algoritmos de reconhecimento facial. Somos cada vez mais assistentes dos assistentes de IA.
Discursos (apontando para virtualidades e possíveis atualizações) são produzidos para tentar nos convencer justamente da sua necessidade, importância, benesses ou perigo. O mundo ficcional sendo produzido em tempo real. Tudo é mobilizado em uma lógica da inevitabilidade. Ideologias, sonhos, interesses políticos e econômicos são mobilizados e já vemos o mundo com olhinhos da IA que é aquele que reduz a complexidade do mundo a saídas, respostas, dados inequívocos automatizados. Começamos a reconhecer que o mundo é isso mesmo, com pouca ambivalência. Temos a construção de uma conformação social, simbólica, pragmática e psicológica que aprende a confiar e a ver o mundo como essas tecnologias. Treinado que somos, já reformulamos a forma como perguntamos e respondemos para interagir bem com os sistemas, agindo, pensando e esperando respostas, “como ele”.
O treinamento leva inevitavelmente a uma mudança cognitiva, ou seja a uma mudança na forma como lemos e escrevemos o mundo, e por consequência como tomamos decisões afetivas, políticas, econômicas, bélicas. Não é a IA que substituirá o humano, é o humano que, se bem treinamento, se parecerá cada vez mais com uma IA (atualizando a frase de Henri Lefebvre em “Vers le cybernanthrope”). Mas, como argumento aqui, essa dinâmica de virtualização e atualização não é exclusividade da IA. Isso aconteceu com a invenção da escrita. Estamos sempre sendo “treinados” por nossas tecnologias da inteligência e instrumentos científicos, nos adequando às sua lógicas e adaptando o nosso olhar aos seus princípios e materialidades. O que sabemos do mundo vem da mediação de múltiplos artefatos que implica uma forma específica de lidarmos com aquilo que experimentamos, no dia a dia, em primeira mão, ou com o distante, através de livros, das artes, da ciência... Nossa inteligência é desde sempre “artificial”, devedoras dos instrumentos, máquinas, ferramentas...
O que podemos fazer contra esse “treinamento reverso” imposto pela IA?A saída, certamente, não é adotar uma perspectiva antropocêntrica e essencialista de “dominar o instrumento”, de dizer que ele cria um mundo ilusório e “virtual”. Fracassaremos. A saída é sempre questionar material e discursivamente os constructos. Perturbar e desviar esses treinamentos, produzindo sentidos coletivamente construídos. Desconfiar dos fazedores de sonhos que estão menos preocupados com sonhos e pesadelos e mais com o que podem ganhar política ou financeiramente. Inteligência não é processar dados, mas adaptação, desadaptação e readaptação ao mundo aberto de sentido. Não é dar a resposta automatizada, mas questionar o porquê das perguntas.
4. Brain Rot?
Somos atravessados pelas mídias desde sempre. Não é agora o brain rot (falácia que nos acostumamos desde o inicio dos mass media. O cérebro ia apodrecer vendo TV, ouvindo heavy metal, lendo revistas em quadrinhos, assistindo a filmes violentos, ou jogando videogame. Isso não significa que o tempo passado diante das telas, ou de qualquer outra coisa não seja preocupante. Hoje vai apodrecer (não apodreceram?) com as redes sociais. Ora, evitemos isso. O problema não é sair do real e ir para o virtual, mas o colapso de uma maneira de fazer as coisas, bem reais, pragmáticas, situadas que aniquilam outras, alimentadas pelas Big Tech que são, de fato, produtoras de futuros sem qualquer compromisso com a sua realização. Não é disso que se trata: ir para um mundo fictício, ilusório, fora da realidade (lutamos contra isso o tempo todo não é mesmo, isso não é privilegio das tecnologias digitais, que tipo de ficção estamos produzindo agora mesmo para as nossa s vidas? Como disse acima, o virtual-atual é a dinâmica de tudo).
Portanto se não abandonarem essa falácia (pensar que só com tecnologia e no mundo eletrônico corremos o risco de ir para um mundo de ilusão, como se fora dela estivéssemos no real – real), não vamos conseguir analisar de forma material-discursiva os problema da sociedade digital. Há muitos. Foco atencional narcísico, na rolagem que é “eu, eu, eu, eu”, na falência de acordos comuns com a desinformação e pós-verdade. Vemos uma geração, diferente da nossa que busca a si mesma, onde tudo vale (não é mais ideologias a defender), pós-verdades sem que possamos achar um terreno comum de discussão minimamente racional; ênfase no fluxo constante de informação no qual o “tedio” vira um grande vazio... entre outros...
As materialidades digitais e não as “virtualidades” produzem e são produzidas por um novo tipo de subjetividade que poderíamos chamar de "sujeito informacional performativo". Este sujeito existe simultaneamente como consumidor e produtor de informação, constantemente engajado em performances identitárias mediadas por interfaces digitais. Nas redes sociais, plataformas de streaming, aplicativos de relacionamento e ambientes de realidade virtual, o sujeito é convocado a uma contínua performance de si. Esta performance não é uma simulação ou falsificação - é uma produção real de subjetividade, com consequências psíquicas concretas. Um adolescente que cuida meticulosamente de seu perfil em redes sociais não está engajado em uma atividade menos autêntica que suas interações presenciais. Está participando de um processo de construção identitária tão significativo quanto outros - apenas mediado por diferentes materialidades e regimes de visibilidade. O que devemos analisar não é uma suposta distinção entre identidades "reais" e "virtuais", mas as condições materiais em que estas performances ocorrem: algoritmos que premiam certos comportamentos e punem outros, interfaces que direcionam atenção para determinados aspectos da experiência enquanto obscurecem outros, economias da atenção que transformam vulnerabilidades psíquicas em oportunidades de lucro.
Conclusão
O que chamo de virtualização deve ser identifica no curto-circuito de instaurações e sujeições que os modernos chamam separadamente de matéria e simbólico e que na minha opinião leva ao erro da associação do virtual a uma essência da técnica que seria ilusória, criando e fazendo os humanos habitarem um mundo a parte. De novo, habitamos um mundo a parte desde sempre pelas virtualizações e atualizações das nossas tecnologias da inteligência entendidas como dobras e engates, desde a língua, a escrita até a inteligência artificial. Por isso, abandonar a perspectiva essencialistas nos permite entender melhor o problema ao qual, nos humanos, estamos entrelaçados.
O inconsciente é, em certo sentido, virtual - um campo de possibilidades significantes que se atualizam no discurso, nos sonhos, nos lapsos. A transferência mobiliza virtualidades que se atualizam na relação analítica. A própria interpretação analítica opera virtualizando significados cristalizados para permitir novas atualizações. Portanto, vocês conhecem muito bem as virtualizações para não se deixarem levar pela falácia da virtualização das tecnologias digitais.
Esta concepção nos permite romper com visões simplistas. Uma pessoa que interage em um ambiente digital não está "menos presente" ou em uma realidade "menos autêntica". Ela está atualizando certas virtualidades de sua existência, enquanto outras permanecem como potências não expressas naquele momento. A questão não é de oposição entre real e virtual, mas de diferentes modos de atualização na construção de um mundo sempre ficcional.
A virtualidade não é uma questão de descolamento do real, mas uma dimensão constitutiva de qualquer processo significante. O problema não é distinguir o "virtual" do "real", mas compreender como diferentes materialidades e processos de significação produzem realidades específicas com consequências particulares. A questão não é se o digital é "menos real", mas quais configurações específicas de poder, atenção, afeto e significação são produzidas em ambientes digitais particulares, e como estas configuram subjetividades e sofrimentos específicos.
Espero ter esclarecido o que identifiquei como um equivoco. Agora, se na base de tudo não havia esse equívoco, peço desculpas pela perda de tempo.
Obrigado pela atenção!